O fado e a improvisação

09.12.2016

Cantiga a atirar, canto ao desafio, canto à desgarrada

Os eruditos de finais do século XIX reconheciam a existência de pessoas que improvisavam o fado.

Alberto Pimentel, na sua obra "A Triste Canção do Sul" (1904), declara:

Todo o português é poeta. São numerosos os improvisadores em Portugal, até nas classes menos cultas, e especialmente nelas (p. 37).

Certamente que o povo, poeta das ruas, improvisador espontâneo e inconsciente, costumaria cantar em público as suas desgraças e as da pátria (p. 15).

E contudo não corresponde esse facto a uma sensível depressão do instinto poético do nosso povo, cuja faculdade de improviso se transmite de geração em geração (p. 37).

Pode-se deduzir que naquela época o povo era entregue a improvisos poéticos que lhe permitiam desabafar os padecimentos derivados da instabilidade política e social que estava a experimentar o país nesse momento.

Portugal passava fome enquanto as sucessivas guerras e invasões devoravam os seus filhos e desestruturavam os alicerces que sustentavam a nação.

O fado veio abrigar as almas perdidas e dar asas para voar num mundo imaginário, onde o fadista se reencontrava com a sua dignidade perdida.

Segundo Pimentel (1904), "os fadistas classificam os fados segundo os assuntos que neles são tratados" (p.70)

Segundo este mesmo autor temos:

  • Fados à terra: Assuntos terrestres.

  • Fados ao mar: Assuntos marítimos.

  • Fados à campa: Assuntos fúnebres.

  • Fados à escritura: Assuntos bíblicos.

  • Cantigas a atirar, ou de provocação e despique (p.71).

As cantigas a atirar guardam certa relação com outras formas de cantos populares improvisados, como o canto à desgarrada e o canto ao desafio. Em ambos há uma controversa entre dois ou mais cantores que se replicam um ao outro.

Nas províncias do Norte também há certamens poéticos entre a gente do povo, especialmente no Minho. É o que lá chamam "cantar ao desafio" (Pimentel, p. 74).

E nas províncias do Sul, fora da classe dos fadistas, diz-se "cantar à desgarrada" (Pimentel, p. 74).

Duas são as diferenças entre a "cantiga a atirar" dos fadistas improvisadores, chamados "bailhões", com o "canto ao desafio" do Norte, e o "canto à desgarrada" do Sul: a métrica e o conteúdo emocional.

Em relação a este último, como já se viu, o povo lisboeta achou-o um excelente veículo para expulsar todo o seu ressentimento contra o mundo num elegante ato de contenda, não carente de violência verbal.

Começa a avultar a diferença na própria designação: a atirar.

Esta expressão dá logo ideia duma classe bulhenta e desordeira, que deseja ferir o adversário, em vez de o vencer apenas (...).

A disputa assenta sobre a competência ou incompetência para cantar Fadinhos; pôde o adversário ser um rouxinol, mas se não entrar bem no ritmo do fado, é pior do que um cão a ladrar, na opinião dos fadistas seus pares.

Toda a pimponice do fadista se arreganha nas "cantigas a atirar".

A si mesmo se exalta, ele, na recordação das suas grandes zaragatas em Alfama e Mouraria:

Eu já fiz lá para Alfama

Fugir dúzias de janotas

Desvanece-se de afugentar os janotas e de resistir à polícia:

Nem dez polícias civis

Me põem na casa da guarda.

É a prosápia do bailhão, o mais desordeiro e implicante dos fadistas; como quem diz a "quinta essência" da classe.

Tem seus Fados especiais, o bailhão. Celebra-se a si mesmo; canta a sua Odisseia.

Há famílias, dinastias de bailhões, que se fazem temer (Pimentel, p. 75).

Então, no calor da noitada, ao luar e ao relento nas Marnotas, a Severa, excitada, cantava fados gaiatos, cantigas a atirar, irónicas, picantes, contendendo com as outras mulheres menos célebres do que ela (p. 153).

As cantigas a atirar não se confundem, pois, nem pelo texto, nem pela forma, com os desafios do norte e com as desgarradas do sul.

São o próprio fado numa intenção provocante, de zaragata e de facada (p. 77).

Formas poéticas

A métrica com que se improvisava o fado do século XIX era apenas a décima glosada com mote e a quadra. Porém, para Pimentel, a quadra era considerada um género menor e até uma interferência no mundo do fado.

A poesia com que, invariavelmente quase, se canta o fado é uma quadra glosada em décimas, forma poética duma antiguidade pouco remota, duma origem nada popular e sem relação alguma com a poesia árabe (p. 21).

É certo que dos fados à morte da Severa, e alguns mais, eram em quadras, mas depois o povo adotou outra forma estrófica. A quadra, no Fado, veio modernamente de Coimbra e foi o estudante Hilário que lhe deu grande voga cantando quadras compostas por ele e outras.

A letra do fado, na tradição popular, como nota Ernesto Vieira, é talhada nos moldes arcádicos do mote em quadras e da glosa em décimas (p. 23-24).

Apenas o fado literário admite a quadra em vez da décima (p. 24).

Na atualidade resulta surpreendente observar como, naquela época, pessoas incultas conseguiam improvisar formas tão difíceis como a décima glosada com mote. Vejamos um exemplo:


Sou saloio, honro-me disso,

Para casacas não sou mau;

Os janotas atrevidos

Sei correr a varapau.


Que andamos no ramerrão

Dizem lá os de Lisboa;

Porém entre nós já soa

O brado da ilustração:

Escolas já cá estão

Fazendo belo serviço;

Eu cá já tenho toutiço

Para entender os jornais,

Tenho ideias liberais,

Sou saloio, honro-me disso.


Aos comícios vou também

E lá sei falar em barda

Contra quem me põe albarda,

E nos deixa sem vintém:

É certo que não vou bem

Com quem se me faz marau;

Mas jamais corro a calhau

Quem me sabe respeitar;

Se não vêm cá namorar

Para casacas não sou mau.


Para as madamas que cá vêm

Com o fim de tomar ares,

Temos modos singulares

E atenções como ninguém;

Nós cantamos muito bem

Os doces fados corridos;

De amor mil versos sentidos

Sabemos improvisar.

E com eles castigar

Os janotas atrevidos.


E saiba qualquer senhor

Que eu, saloio esperto e gírio,

Não sofro manguem com o círio

A que tenho tanto amor:

Se vem com ar zombador

Algum janota marau

Fazer o serviço mau

De quem a crença me ataca,

Verá como eu um casaca

Sei correr a varapau.


(Fado saloio, extraído dum almanaque do século XIX).

A rima das décimas segue a forma: abbaaccddc. A qual coisa significa que o primeiro verso (a) rima com o quarto e o quinto, o segundo (b) com o terceiro, o sexto (c), com o sétimo e o décimo e o oitavo (d) com o nono. O mote que precede às décimas é uma quadra com rima abcb, mas ao mesmo tempo, cada verso deste mote coincide com o último de cada décima.

Este facto explicaria, em parte, o caráter mítico que chegaram a atingir alguns fadistas graças a esta impressionante habilidade improvisadora.

Posteriormente às formas novecentistas do fado se lhe foram acrescentando outras formas poéticas, como os versos alexandrinos, as quintilhas, as sextilhas, a canção... Algumas delas também se praticaram ocasionalmente ao improviso, mas o fado improvisado foi paulatinamente perdendo-se até ficar em exclusiva no campo restrito das quadras. A partir deste ponto deixa de haver diferença entre cantiga a atirar, canto à desgarrada e canto ao desafio.

Música

A importância que os fadistas do novecento davam à questão musical era escassa. O seu papel era limitado quase exclusivamente a sustentação do texto poético.

Os músicos em Portugal não são tão abundantes como os poetas, o que mostra que se repete uma banalidade, com resaibos mitológicos, quando se diz que a música é irmã da poesia.

Aprendemos sem esforço as melodias simples e singelas, como as do Fado Corrido, porque são como que uma ressonância natural do próprio génio da língua, uma espécie de metrificação musical, paralela à versificação instintiva do povo (Pimentel, p. 38).

No entanto, nas descrições feitas pelos escritores do Romantismo existe um termo que se repete constantemente ao qualificar as melodias do fado: "requebros". Esta palavra coincide perfeitamente com o que na atualidade chamamos "estilar".

O estilar define-se como uma técnica de interpretação musical feita pelo cantor onde a melodia adquire elasticidade em todos os sentidos:

  • Elasticidade rítmica:

    • Em relação com o texto, uma melodia pode alargar ou encurtar os seus valores rítmicos para se adaptar à acentuação tónica das palavras.

    • Com o fim de acrescentar a expressividade do texto o cantor faz interrupções melódicas, rubatos ou aliás detenção ocasional da pulsação rítmica da peça.

  • Elasticidade melódica: Fazer "requebros" significa ornamentar a melodia, com notas da harmonia ou estranhas a esta.

    • As ornamentações usadas pelo fado foram evoluindo ao longo da história, especialmente a partir do momento em que a fonografia permitiu aos cantores ouvirem-se a si próprios. Desta forma, aos clássicos trilos, mordentes e grupetos, acrescentaram-se portamentos ascendentes e descendentes e glissandos.

    • A melodia sustentada por unha harmonia singela executada pelos instrumentos de corda permite ao cantor mudar qualquer nota da melodia original em base a notas de referência existentes na harmonia de base.

Todos estes procedimentos fazem com que a melodia, submetida à criatividade dos intérpretes possa ficar ao fim irreconhecível, em favor a uma expressividade, em certa forma teatral, do texto poético.

Todo o homem do povo é capaz de pôr lágrimas na voz para cantar o Fado, porque cada classe, como cada raça, possui uma gama especial para interpretar as suas paixões, os golpes cruéis do seu destino.

O bom cantador do Fado requebra a voz com "sentimentalidade canalha" e com a "intermissão de uns ais i uns oras mui langorosos, o zing fadista de cervejarias e botequins de lacaios". (Pimentel, p. 60).

Violas e guitarras

Os instrumentos que partilham com o fado o protagonismo expressivo do cantor também tiveram uma evolução onde, à medida que os instrumentistas iam desenvolvendo técnicas cada vez mais eficazes, a sua função dentro do fado adquirira uma linguagem própria.

A meados do século XIX a função da guitarra era a de aportar um colchão harmónico ao cantor mediante fórmulas simples consistentes em arpejos de colcheia. Com frequência era o próprio cantor quem também tocava guitarra ou viola enquanto cantava. Mas bem cedo os guitarristas começaram a desenvolver as suas dotes criativas:

Quando o fado não é tocado para acompanhar o canto, os guitarristas bordam sobre ele os arabescos da sua fantasia musical, arrancam ao instrumento variações que percorrem toda a gama cromática dos êxtases amorosos, das idealidades cismadoras, dos afetos jubilatórios (Tinop, 1901, p.85).

Na atualidade a guitarra tem já conquistado um lugar preeminente ao lado do cantor fadista, onde a linguagem de um e outro parecem dialogar num mesmo nível de entendimento, reforçando-se um ao outro na sua expressividade. O repicar das guitarras é habitualmente improvisado pelos melhores instrumentistas.

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